Construindo a cena da procissão musical
Essa cena deu um trabalho bom, e muito ensinamento.
Começou com aquilo que a gente vem tentando explorar: as relações entre texto, som e movimento.
Antes da cena, dedicamos muito tempo às interações entre sons e exploração das técnicas do curso.
Neste semestre, com uso de técnica de loops, estou trabalhando com camadas. Assim, diferentemente de outros semestres, há mais abertura a combinações timbrísticas. No caso, todos estamos expostos mais a camadas de som. O loop é isso: pedaços de sons no tempo são justapostos recursivamente. Eu começo assim: faço um primeiro pedaço, que pode ser uma base harmônica ou melódica, e depois vou inserindo outro pedaço, evitando a saturação auditiva. Os pedaços podem entrar em relação de resposta, de ênfase, de contraste, de preenchimento, etc. No momento ainda uso um loop de menor temporalidade - 32 segundos.
A técnica é de composição em bloco, que vão sendo adicionados, como uma receita, que vai incorporando ingredientes. A questão é administrar três coisas:
a- o volume de entrada de cada nova camada, para que não haja saturação de informações sonoras e sons/níveis não distinguíveis.
b- a aleatoriedade das escolhas: eu ainda não gravo no banco de memória. Fico buscando os sons e fazendo decisões na hora. Com isso muitas vezes o timbre escolhido tem de ser encaixado - se entra estourando, com distorção, tenho de administrar na mão e no volume depois. A questão é ouvir. Os encaixes se dão em dois momentos: na escolha do timbre e em sua escuta. A sucessão dos timbres não é previamente decidida.
c- a cena. além das decisões de timbre, tudo o que toco está intimamente relacionado com a o que vejo, com as movimentações. Se preciso de uma material mais estável, mais consonante; se preciso de algo mais acelerado, mais dissonante.
Então veio o trabalho com a cena, a partir de 1:13:20.
Lembrando: um texto de base foi dado para os integrantes da disciplina. Dentro desse texto, A cidade mística, há diversas cenas, umas com textos, outras com letras de canções, outras só com descrições de ações. Não foi designado para ninguém uma ou outra cena. Eis a cena de hoje:
CENA 7
Projeção das imagens-traços que Lucio Costa apresentou em seu esboço do Plano Piloto de Brasília. Foco nos dois eixos que se cruzam em um ângulo reto: cruz, sinal da cruz. Essa cruz gira e gera vento. Do vento, do fundo do palco, vem a figura ornada como uma estátua de Nossa Senhora Aparecida: eis uma mulher negra, sustentada pelo coro, como se fosse um item de procissão. O coro como um cordão de carnaval, numa marcha em ritmo de afoxé. Depois de sua entrada, a Nossa Senhora Aparecida passa a dançar em seu “carro alegórico”. Após instantes de seu desfile ela começa um canto responsivo com o coro e com o público. Folhetos com a homilia são distribuídas para o público, impressas as partes da mulher e da audiência
NOSSA SENHORA APARECIDA (lendo com óculos)
Senhor Deus, deuses, todos os espíritos!
PÚBLICO
Eles estão no meio de nós!
NOSSA SENHORA APARECIDA (joga o panfleto fora)
Tá na hora de revelar o que estava oculto,
de mostrar o que se sabe,
de cumprir com nossa sina (ela arranca a peruca, mostrando sua cabeleira afro, e vai desabotoando o corpete de santa.)
PÚBLICO
Corações ao alto, eles estão entre de nós.
NOSSA SENHORA APARECIDA
Todos nós temos um sol interior,
continuamente em movimento, eterno.
Estamos ao mesmo tempo aqui e longe,
sentados em nossas casas e vagando no infinito.
Somos astros, galáxias, entidades e terra escura.
Uma ideia, uma piscadela, um refluxo, um caminho no meio da montanha.
Com o coração angustiado não contemplamos o amplo horizonte.
Com o coração cheio de terra afundamos no vazio do esquecimento.
Há muitos planos, outras geometrias.
Vivemos dentro de uma xícara emborcada, torta.
Vivemos ao mesmo tempo nos céus e na nossa rua.
Por isso eu vou juntar todos em uma cidade dentro de uma cidade,
um vale dentro de um vale, pra prender o sol, pra estudar o sol,
pra rasgar os peitos e parir o sol em cada peito,
e tirar essas carnes, e essas roupas, e minha nudez será me vestir de novo,
com as indumentárias que vou andando,
(o coro volta a fazer sua procissão, em volta da mulher)
as cores, as vibrações, os símbolos,
vou andando os caminhos abertos,
as trilhas da luz, o sol em sua trajetória,
os outros planos, as outras vidas,
a cidade dentro da cidade,
uma festa sideral,
todos unidos
CORO
Todos juntos!
NOSSA SENHORA APARECIDA
Estamos onde vemos o universo, um coro de almas!
CORO
Bendito aquilo que vem de cima!
NOSSA SENHORA APARECIDA
Os céus se abrem, a paz nos alcança!
CORO
Luz nos corações! Um sol em nosso peito!
NOSSA SENHORA APARECIDA
Se abracem, se amem, tudo foi revelado!
CORO
Eles estão no meio de nós!
Eles estão no meio de nós!
(vão saindo todos de cena)
LETRA CANÇÃO CAMINHANTE
Eu ando por todo mundo ouvindo histórias
Eu venho de muito longe, de longe eu vim.
Eu trago nas costas flores tão bonitas
as cores tão vivas que eu tenho em meu jardim
Não sei quando vou chegar
não tenho nenhuma pressa
só quero ouvir a minha voz
Não tenho nenhuma razão
não quero ouvir respostas
E livre leve solto eu vou cantar
Eu ando por todo mundo ouvindo histórias
Eu venho de muito longe, de longe eu vim.
Eu trago nas costas flores tão bonitas
as cores tão vivas que eu tenho em meu jardim
A partir daqui, vamos contruir a cena. Foi um dos momentos mais estranhos pra mim. Essa música tinha um andamento mais animado. E eu tinha na minha cabeça uma coisa, e o Flávio estava construindo a procissão e tinha na cabeça dela o momento solene da procissão. E eu não tava entendendo isso. Houve uma assincronia alongada entre a condução da cena e a dramaturgia musical. Eu pensava em passar a música, em sua integridade, e Flávio ocupado na cena da procissão.
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