criação de cenas



Ontem, dia 8 de novembro, mesmo com esvaziamento, tivemos um ótimo encontro.

Flávio trouxe instrumentos de percussão e percussão sempre casa bem com música para cena e improvisação. Foi proposto um ritmo - samba. A partir daí surgiu a parte A de uma canção que vai finalizar nossa performance para o Cometa Cenas.

A técnica de partir de um estilema rítmico é bem utiliza em cursos de composição. Trata-se de buscar um padrão e a partir daí elaborar um melodia. A familiaridade com o padrão integrava os intérpretes num coletivo.

Quando a gente trabalhava com Hugo, ele fazia questão de inserir tais elementos coletivos em momentos especiais do espetáculo - para começar e pra terminar. No caso do samba, há uma atmosfera de comemoração. Então, em termos de dramaturgia musical, trata-se de escolher um ritmo para uma função dentro do espetáculo. E considerar qual o momento inserir tal e tal ritmo.

Depois trabalhamos com texto. Como estamos trabalhando desde o início, foi fornecido um roteiro com cenas e textos. Não houve designação de quem vai fazer os textos. Sant escolheu o texto da cena 05, que tem um sábio indiano andrógino em cena. A cena foi pensada para dois intérpretes, para que a questão do corpo e da voz fosse explorada em suas convergências e divergências. Na cultura sanscrítica, Shiva se manifesta de diversas maneiras. Uma delas é "Ardhanarishvara" ou "Senhor andrógino", "Senhor metade mulher". "Ardhanarishvara" é construído por três palavras:  ardha: ‘meio/metade’; nari: ‘fêmea’; e ishvara: ‘senhor'. 
Não esquecer que Shiva, além de suas variações como sábio, destruidor, é também o deus da dança. 

V. LACROSSE, Joaquim.
" Uma passagem de Porfírio relativa ao Śiva andrógino dos brâmanes da Índia"
Link: https://www.scielo.br/j/kr/a/SYwqCRvFWYxQDvQzbL6WszD/

Sant então ficou com a difícil tarefa de explorar as tensões entre corpo e texto. É um grande desafio para interpretação. Como Sant vem trabalhando desde o semestre passado com a criação de arranjos físicos não convencionais, que em diversos momentos se parecem com figuras da mitologia indiana, a difícil tarefa está em boas mãos. 
Nas abordagens iniciais, enquanto distorce seu corpo e vai gerando as formas que só uma divindade plástica pode fazer, Sant apresenta o texto.  Daí começam as questões de montagem da cena. Eu estava produzindo um tipo de música, mais suave, com timbres mais em médio agudos. Flávio solicitou algo mais grave e forte para marca a imponência da cena, que na verdade é a aparição de uma divindade.  As coisas vão sendo feitas em tempo real, com suas alterações.
Mudado o timbre, mudada a sonora, a cena muda. O impacto das notas graves, como o pé de uma divindade no chão vem após o sons do pau de chuva. 
Lembrar que o pau de chuva está presente em cerimônias religiosas e rituais xamânicos, nas Américas, na África e na Austrália. 
Então, após o anúncio pelo idiofone, arrebenta o raio que rasga o chão.
Sant passa a sua performance enquanto o coro gira em volta.
É algo cósmico, a divindade e o céu.
Uma questão ainda a se aprofundar foi o do encaixe das ações, seja da Sant, do coro e da música. São muitas coisas juntas que estão sendo resolvidas.
Como havia muitas interrupções, houve a decisão de ir cortando o texto em subunidades. Olhando o texto, ele é um conjunto de linhas/versos

SÁBIO INDIANO  (fala recitando)

Com a cabeça inclinada, purificando-me saúdo,

a raiz das gerações – dias, noites, meses –

o curso inabalável do sol.

Tudo é movimento, tudo é número,

diz o sábio que não descansa ou se apaga.

Aquele que entender a dança do sol, da lua e dos planetas

vai desfrutar, após a morte, da vida além dos astros, a fonte da luz.

Tomem a medida desse jarro:

cinco copos de água, nem mais nem menos.

Toda a água do mundo não é maior ou melhor.

(ele inclina o vaso e “jorra” partículas luminosas, areia fluorescente)

E assim é um tempo e a metade dele e sua outra parte desconhecida:

um meio líquido, um vazio poroso repleto de vazios,

suspenso entre o alcance da mão e uma baforada de calor.

É que os deuses estão aqui conosco:

eu sei seus nomes, suas formas, seus cabelos, sombras.

É que o mistério morde as bordas da figura e de suas pegadas.

Use a regra: pegue o resultado e multiplique pela que você quer encontrar

e divida essa soma pela quantidade que daquilo que já se sabia.

Calcule e sonhe,

dobre a curva e siga em frente,

Há cinco copos de água nesse jarro,

o suficiente para o jarro

e não para mim e para você.

Quantas vezes a lua gira em volta de si mesma?

Quanto é distância daqui para o sol?

Quanto dias são necessários para você deixar de me ouvir?

 

E para onde giram os astros?

E por que não se partem em mil pedaços,

e não caem sobre nossas cabeças?

E nos atacam, nos calam, nos apavoram,

pois é isso que fazemos uns com os outros...

 

É que tudo está desfeito e estraçalhado,

só nos resta contar, fracionar, calcular,

explodir em porções cada vez menores,

e imaginar que estamos empanturrando o mundo

com vestígios das coisas que pensamos juntas,

unidas, reais – as coisas que não temos, nem somos.

 

(junta a poeira brilhante e tenta colocar de novo dentro do jarro)

 

Parecem versos, mas é um tipo de escrita que venho desenvolvendo para teatro que não é verso nem prosa. Eu interrompo a linha para marcar o que deve ser dito até ali. No lugar de um texto em prosa, no qual as pausas terão de ser descobertas, eu escrevo marcando essas pequenas pausas de respiração e atenção já no texto. São guias. Faço isso para orientar a performance e para evitar que se entenda o verso em um registro sentimental, com aquela cantiga de "Batatinha quando nasce"...

Eu não expliquei nada disso no início, pois a experiência do nosso TEAC é da pesquisa a ser feita dentro da disciplina. 

Então, eu escrevo assim: frases/versos/linhas mais longas, que possui uma pausa ao fim da frase-linha-verso para respiração; frases mais curtas, como golpes, coisas mais diretas, mudanças bruscas. 

Não uso a vírgula para marcar pausas e sim ênfases, como em enumeração, em listas de coisas. Já o ponto é ponto. 

Além disso, há as palavras-chave que precisam maior força para se pronunciar.

Ou seja, muita coisa para trabalhar.

E estamos juntos.







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